quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

PARA COMPLETAR O ABORDADO NA ENTREVISTA DE EROS GRAU (JUIZ PODE INOVAR NO CAMPO LEGISLATIVO)?

Ludmila Silva de Brito - Estudante
Data: 11/04/2007
Juízes legisladores: da ilegitimidade à insegurança jurídica
Juízes legisladores: da ilegitimidade à insegurança jurídica
Ludmila Silva de Brito
SUMÁRIO: Introdução. 1. A separação dos poderes e os juízes legisladores. 2. A insegurança jurídica trazida pelos juízes. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
A produção do direito tem se tornado uma prática cada vez mais visível e freqüente, na atividade judicial. O objetivo deste trabalho é discutir sobre essa atividade de criação do direito pelos juízes, enfocando principalmente a ilegitimidade da referida criação e o problema gerado quanto à insegurança jurídica trazida pela mesma. A principal razão dessa análise é a de constatar como a criatividade da jurisprudência vem ferindo a separação das funções estatais prevista pela Constituição Federal bem como o problema da incerteza jurídica aos operadores do direito e principalmente aos cidadãos.
Fundamenta-se este trabalho no estudo realizado por DWORKIN (2002) em seu livro Levando os direitos a sério, Capítulo 1- Teoria do direito, no qual faz uma análise sobre a teoria do direito apresentando a necessidade da fundamentação das decisões judiciais e a importância da utilização dos princípios neste processo; CARLOS ALBERTO AURÉLIO DE SOUZA (1996) em sua obra a respeito da segurança jurídica e jurisprudência.
Organiza-se esse trabalho em duas partes. A primeira aborda a estrutura organizacional dos poderes estatais e como a atividade jurisdicional quebra com essa organização. A segunda trata da insegurança jurídica que o Poder Judiciário está criando com a realização dessa função que não lhe é própria gerando, assim, total instabilidade ao sistema jurídico.
1. Separação de poderes e os juízes legisladores
Hobbes, em sua obra Leviatã, notando a impossibilidade de uma convivência harmoniosa entre as pessoas sem o domínio abstrato que se concretiza em poder sobre o povo, elaborou uma teoria do Estado. Nesta, introduziu um conceito moderno de legitimidade mostrando a importância da força coercitiva do soberano para se fazer valer a palavra dada pelos súditos. Observando a existência de divergência quanto ao sentido de valores como justiça, do que seria o certo e o errado (valores que para ele pertencia ao foro interno do ser humano) defendeu a instituição do Estado.
Fazendo oposição aos que defendiam as “leis da natureza” (a moral) defendia o autor a necessidade de se constituir um poder comum e forte, capaz de impedir os conflitos decorrentes das divergências de convicções de cada um e impor limites a essas pluralidades de crenças. A paz e a defesa de todos só seria possível através da instituição do Estado
A busca pela paz social foi alcançada por meio do contrato social. O mecanismo encontrado para fazer cumprir o mesmo foi entregar o poder a uma pessoa ou pessoas que punissem quem quebrasse o contrato. Esta pessoa era o soberano (o Leviatã) o qual poderia ser um indivíduo, uma assembléia eleita ou qualquer outra forma de governo. Segundo Hobbes, o que diferenciava um governo do outro era o tipo do soberano ou das pessoas que foram eleitas pelo povo. Sendo o representante uma só pessoa, o governo seria uma monarquia. Quando uma assembléia, formada pela junção de todos que se uniram, constituiria uma democracia ou um governo popular. E quando uma assembléia formada apenas por uma parte, ter-se-ia uma aristocracia. Nesta obra se estabelece geração e definição do Estado.
Posteriormente Aristóteles esboça a divisão da função estatal atribuídas a três órgãos distintos.Este já se preocupava com a concentração do poder nas mãos de uma pessoa o que seria perigoso e também injusto. Seguido por John Locke que, no Segundo tratado de governo civil, reconhece as três funções distintas para assegurar a ordem e o direito.
Finalmente Montesquieu que por meio de sua obra "De L’Espirit des Lois” realizou a distribuição clássica da divisão dos poderes previstas no art.16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão e presentes em muitas constituições da atualidade. O Objetivo da separação de poderes concentrava-se, principalmente, na proteção da liberdade individual e na eficiência do Estado impedindo que este elaborasse leis tirânicas e as executassem da mesma forma.
A Constituição Federal de 1988, em seu art.2º, fixou a independência e harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Manteve, assim, o modelo adotado pelas constituições republicanas, objetivando evitar a arbitrariedade e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, principalmente no que diz respeito ao princípio da igualdade.
Os três poderes exercem funções típicas, que são aquelas predominantes, e funções atípicas, que são também previstas na Constituição Federal. No que tange ao Poder Judiciário, objeto de análise em questão, sua função típica consiste em julgar aplicando a lei ao caso concreto resultante de determinado conflito de interesse. A função atípica pode ser de natureza administrativa e legislativa. Esta última, a qual nos interessa, diz respeito à elaboração de normas regimentais com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, conforme previsão do art. 96, I, a da CF.
Acontece que se tem observado, na pratica jurídica, justamente a violação da função do Poder Legislativo, no que tange a elaboração das leis, pelo Poder Judiciário. Este, vem fazendo as vezes do Legislador e ferindo o princípio da separação de poderes, pensando, de forma equivocada, que assim estaria assegurando o princípio da igualdade. Não só se observa a afronta desses princípios constitucionais como também retira do povo os mecanismos que lhe foram cedidos para o controle e oposição de entendimentos com os quais não concordam. Os membros do poder Judiciário não são eleitos pelos cidadãos e, portanto falta aos mesmos legitimidade para o exercício da atividade de elaboração normativa. A legitimidade para criar leis é concedida pelo cidadão brasileiro através dos votos, é através da representatividade que essa atividade pode ser concretizada. Isso é o que se extrai do art. 1º, parágrafo único da Constituição da República Federativa do Brasil, como pode ser observado:
“Parágrafo único: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
O Brasil é, portanto, uma democracia representativa e a edição de normas somente poderá ser feitas pelos representantes eleitos.Estes sim são os únicos que possuem legitimidade para legislar. Permitir que os juízes elaborem norma é uma afronta a Constituição vigente no nosso país.
Não se trata de negar a atividade judicial e a sua importância, mas sim de se limitar o poder dos juízes na hora de decidir a lide e os chamados “casos difíceis”. As decisões devem ser fundamentadas no direito vigente e nos princípios. Como defende DWORKIN, a discricionariedade judicial deve ser afastada, pois do contrário os direitos individuais estariam desprotegidos e à mercê dos juízes. Para o autor, diante dos casos difíceis deve-se obter a certeza do direito através da busca da racionalidade, ou seja, critérios objetivos de justificação do direito. DWORKIN no primeiro capítulo do seu livro Levando os direitos a sério, abordando sobre a teoria do direito, expõe que:
“As diversas correntes da abordagem profissional da teoria do direito fracassaram pela mesma razão subjacente. Elas ignoram o fato crucial de que os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos”.(op. Cit: 12).
Dessa forma, fica claro que as decisões judiciais devem se basear em argumentos racionais fundamentando-se em princípios e não em política.
2. A insegurança jurídica trazida pelos juízes
O grau de discricionariedade dos juízes tem aumentado de tal forma que se observa, ainda, que eles primeiramente decidem a lide para só posteriormente fundamentá-la, isso quando não acontece de os mesmos apenas decidirem com fundamentos políticos. As decisões, portanto, deixaram de decorrer de premissas existentes no ordenamento jurídico passando a ser politizadas, o que causa uma verdadeira insegurança jurídica.
Como bem preceitua Laporta, um ordenamento jurídico sem segurança jurídica será necessariamente injusto, mas um ordenamento jurídico com segurança jurídica poderá ser injusto, vai depender se o direito comporta ou não outras valorações. Carlos Alberto Aurélio de Souza, em seu livro Segurança Jurídica e Jurisprudência estabelece a relação entre esses dois fatores:
“Segurança e Justiça à sua vez, são valores que se completam e se fundamentam reciprocamente: não há Justiça materialmente eficaz se não for ”assegurado“ aos cidadãos, concretamente, o direito de ser reconhecido a ”cada um o que é seu “, aquilo que, por ser justo, lhe compete”.(op. Cit: 02).
Através da segurança jurídica criamos confiança no nosso ordenamento, seja como cidadão ou como operador do direito. A segurança jurídica é um princípio implícito na Constituição Federal, expressa expectativas como a ordem, certeza e previsibilidade. Está previsto no preâmbulo da Lei Maior a segurança e a justiça como valores supremos.
A partir do momento que os juízes passam a exercer sua atividade de forma discricionária, criando o direito, essas expectativas tornam-se mais difíceis de serem concretizadas. Como saber de que forma o conflito do qual você faz parte será solucionado, se o juiz pode decidir de forma autônoma? Como saber qual o momento ou situação de vida, que certamente influenciará a decisão, estará vivendo o juiz da questão naquele exato momento? Oferecerá essa situação uma estabilidade ao cidadão e ao operador do direito?
Essas são questões que vão de encontro às características formais da segurança jurídica tais como estabilidade, generalidade, aplicação regular e constante, etc. Os juizes terminam por divergir em suas decisões o que prova que não existe qualquer previsibilidade em saber como determinado conflito será resolvido ou quais os critérios que seriam utilizados para solucioná-lo.
Conclusão
Após a análise evidencia-se que a atividade de criação do direito pelo juiz afronta diretamente a Constituição vigente. Configura-se não só ilegítima como também ofensiva a um princípio tão importante no nosso direito constitucional positivo, como o da separação de poderes (art. 3°). O judiciário não pode invadir a esfera da função do legislativo de forma a romper com a harmonia e independência entre os poderes da República.
Os processo de interpretação e de decisão dos conflitos não podem e não devem se prestar à subversão dos princípios. A tarefa do juiz em julgar não é nada fácil, mas não é por isso que ele deve se utilizar das suas convicções morais e políticas para facilitar esse processo.
Observa-se ainda que a geração da instabilidade jurídica não coaduna com o que estabelece o preâmbulo da nossa Constituição. A segurança jurídica, como já esclarecido, é um princípio constitucional constituindo um dos valores supremos do Estado Democrático de direito.
Bibliografia:
DWORKIN, Ronald. “Teoria do direito”. In: Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes. P. 01—22.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2002.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?- Tradução de Carlos Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança Jurídica e Jurisprudência: Um enfoque filosófico - jurídico. São Paulo, 1996.

Entrevista com Eros Grau (Ex STF)

Essa entrevista eu li em 2010 e o mais importante para mim é a Dualidade Positivista e a que valoriza os Princípios, a flexibilização e etc...
Nessa entrevista ele cita o livro, Levando os Direitos a Serio (1978, Ronald Dworkin), que faz uma crítica ao positivismo. Entretanto, para mim, o mais importante é o que o ex. ministro afirma que ele foi o mais positivista da corte, pois pensava que se não fosse esse positivismo as classes menores estariam "fritas". Nisso, eu faço um paralelo com outro livro muito bom que li, que se chama, A luta pelo Direito de Rudolf Von Ihering, que mostra as lutas das gerações em busca de conquistas, ou seja, ele aborda muito bem a questão do sacrifício de uns para a conquista do Direito, "Não é o costume unicamente que dá vida aos laços que ligam os povos com seu direito, mas sim o sacrifício é que os une de modo mais duradouro e quando Deus quer a prosperidade de um povo, não lhe dá por meio fáceis, porém por caminho mais difíceis e penosos", aliás esse livro foi uma sugestão de um professor do 2 período!!
Para mim, o laço existente entre a entrevista e o livro agora citado é a importância da conquista do Direito, e a menção que o Ex.ministro faz sobre a importancia do Direito Codificado para as Classes baixas.
Por fim, estou lendo o livro mencionado pelo ministro e é nítida a sua crítica ao positivismo, o que configura um  antagonismo às palavras de Eros Grau.
Muito legal esse tema!! Positivismo x A flexibilização, se é que posso chamar assim.
abs,
Tiago


A entrevista:



O Supremo de hoje é produto da nossa história
Nos últimos anos o Supremo Tribunal Federal, a mais alta instancia da Justiça, passou por várias reformas mas não deixou de ter características que remetem ao passado, como o personalismo de seus integrantes e a falta de trabalho em equipe. Produzir decisões coletivamente, essa é a reforma que tem que ser feita
por Entrevista com Eros Grau
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Quanto tempo você passou no Supremo Tribunal Federal?
EROS GRAU – Seis anos. Exatamente seis anos e um mês.
DIPLOMATIQUE – Que balanço que você faz dessa sua passagem pelo Supremo?
EROS GRAU – Eu acho que, de certa forma, foi pagar uma dívida com a sociedade e com meu pai, que foi um cara espetacular, maravilhoso. Eu não diria que foi um sacrifício, mas foi um período sacrificado. Menos pela quantidade de trabalho, que é realmente muito grande; mais pela qualidade do trabalho, são decisões que vão determinar a vida das pessoas. Chega a ser tormentoso. É porque você tem de decidir, necessariamente, no quadro do Direito, que nem sempre coincide com o que você gostaria de decidir. Foi uma grande experiência. Você tem o discurso do Direito, que é aquele que o juiz pronuncia, e você tem o discurso sobre o Direito. Eu, durante seis anos, pronunciei o discurso do Direito.
DIPLOMATIQUE – Como é que você viu a instituição do Supremo?
EROS GRAU – O Supremo de hoje é produto da nossa história, da história do Brasil, ele vai evoluindo… eu tenho insistido em dizer que o Direito é um pedaço da realidade. Não adianta você querer separar. Eu acho que o Supremo teve grandes momentos, a sociedade brasileira já teve grandes momentos, embora eu saiba que nada será como antes, como diz aquela canção. Mas nós vivemos altos e baixos e as nossas instituições tiveram altos e baixos.
Um ponto baixo foi a atuação com relação ao Ficha Limpa. Se você deixar a sociedade ser levada pela emoção, ela lincha, ela arrebenta, tudo isso. O Supremo tem que atuar com prudência, quer dizer, evitar o desvario.  E o que o Supremo fez no caso do Ficha Limpa? Foi exatamente partir para o desvario, jogar na lata do lixo as garantias individuais da regra da presunção da inocência até prova em contrário. O Supremo não é parte de um governo, ele é parte do Estado. Isso é muito importante, e tem muita gente que está lá dentro que pensa que o Supremo faz parte de um governo. O Supremo deve atender às razões de Estado.
No Brasil existe o controle da constitucionalidade difusa, quer dizer, qualquer juiz pode apreciar se uma lei é constitucional ou não. Acontece que hoje os juízes, e o Supremo também, estão fazendo, além do controle da constitucionalidade, o controle da razoabilidade das leis. O juiz se acha no direito de dizer “essa lei não é razoável”.  O que prevalece é a opinião dele, e não a lei. O [sociólogo alemão Jürgen] Habermas disse que o grande risco é você ter uma corte que decida segundo valores, porque valores são preferências. É aquele negócio: “Eu adoto esse valor, você adota aquele; o que não é o meu valor, é o antivalor”.
DIPLOMATIQUE – Você acompanhou aquela menina que “twittou” que os nordestinos deveriam ser afogados e casou a maior celeuma? Isso não demonstra intolerância e vai construindo um tipo de racionalidade que é antidemocrática, antirrepublicana?
EROS GRAU – Sim, é antidemocrático e antirrepublicano. Perde-se a referência do direito positivo e aí vai tudo para o espaço porque teremos um Judiciário que começa a legislar.
Essa tendência não aconteceu por acaso. Nos anos 1980, apareceu um inglês chamado Ronald Dworkin, que escreveu um livro sobre princípios, cujo título era Taking rights seriously (Levando os direitos a sério). Por ter escrito em inglês, essa sua visão se multiplicou. Na Alemanha começaram a surgir textos e o [filósofo do Direto contemporâneo alemão] Robert Alexy que trouxe a história da ponderação de princípios. O que se afirmava, basicamente, é que há uma diferença entre regra e princípio, e quando uma regra se opõe a outra, uma exclui a outra para sempre. E nos princípios não. Eles são afastados num caso, e não em outro. E daí se pondera. Assim, pode ser que em um determinado momento você tenha o princípio da liberdade de imprensa e, em outro, o interesse público. Aí você toma a decisão sobre qual dos dois vai privilegiar. Isso deu origem à subjetividade da ponderação de princípios. Isso é muito grave porque é o caso de você perguntar: “Como é que os juízes decidiam antes, quando ninguém falava disso?”. E os juízes sempre decidiram. Eles sempre interpretaram e sem instrumentalizar nada.
Eu diria que o Supremo passou por uma grande transformação nesse período em que eu estava lá. Entre outras coisas, promoveu uma reforma. O que é que se decidiu nessa reforma?
 A súmula vinculante
Quando houvesse uma sequência de decisões no mesmo sentido, o tribunal faria uma súmula que orientaria o julgamento de processos similares em instancias inferiores da Justiça. A súmula vinculante é uma norma que se transforma em texto e que, portanto, vai passar por um novo processo de interpretação. Agora, quem interpreta o texto é a realidade. Aí está a questão.
Eu vou dar um exemplo que é marcante. O código penal é do início da década de 40. Ele diz que é crime o atentado ao pudor público. Imagina que, em 1945, uma mulher fosse à praia ou à piscina de maiô de duas peças, cavado. Ela, provavelmente, seria interpelada pelo delegado da polícia, pelo Ministério Público. O texto não mudou, mas se você imaginar hoje uma mulher que vá à praia ou à piscina de topless, ela passa e ninguém incomoda. O texto é o mesmo, mas a norma é outra. Se você transforma a súmula vinculante em texto, ela vai ser adaptada à realidade. E ela não vai nem envelhecer, nem permanecer jovem porque ela será contemporânea à própria realidade.  Então, a súmula vinculante, para mim, é um texto novo como diariamente você pode ter leis novas. Não é grave.
DIPLOMATIQUE – O Allen Ginsberg escreveu um livro, Howl, que foi considerado obsceno, pornográfico e irreverente. E num filme sobre a vida dele há um julgamento e o advogado de acusação diz que esse livro é impróprio para as futuras gerações, que não deveriam tomar conhecimento daquilo. E ele está sendo julgado. E então são chamados professores de Literatura das universidades para dar pareceres sobre o livro, e é exatamente isso que você está falando. Como se pode julgar alguém pelos valores do outro?
EROS GRAU – Exatamente. Você está substituindo as normas pelos valores.
Infelizmente, isso que eu vou dizer agora o Fernando Pessoa já dizia antes. Dois ou três anos depois que eu morrer, durante duas vezes por ano, vão pensar em mim. E de vez em quando, talvez, alguém suspire por mim. Por 20 anos, a família vai pensar. E acabou. Então eu sei da minha absoluta falta de importância. O que eu vou dizer agora, portanto, não é arrogância. Eu fui o primeiro que escreveu sobre princípios aqui, quando eu fiz a tese para ser professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). E isso foi um grande mal, porque dei para o juiz um instrumento com que ele justifica o que quiser. Ele toma a decisão e depois vai construí-la com base na flexibilidade, na razoabilidade. Quando eu cheguei ao Supremo Tribunal Federal (STF) diziam: “Aí veio um marxista revolucionário, um ‘comuna’”. E eu saí de lá sendo considerado o maior positivista. Porque eu descobri que a legalidade é o último instrumento de defesa das classes oprimidas. Essa é uma coisa burguesa. É uma liberdade burguesa que tem que se preservar. Porque se eu não preservar a legalidade, a classe operária está “frita”.
Quando relatei o caso do Daniel Dantas, havia um assessor meu que era próximo a mim e estava, à época, fazendo concurso para juiz. Ninguém tinha visto meu voto ainda e, quando eu terminei, mandei um e-mail para esse meu assessor e perguntei “que tal?”. E ele me respondeu: “Que voto lindo, pena que tenha sido para esse réu”. E aí eu respondi para ele perguntando: “Você está fazendo concurso para juiz ou para justiceiro?”. É exatamente isso. O sistema jurídico é efetivamente antipático e há grandes advogados que articulam as razões. E aí você aparentemente chega à questão da impunidade. Por quê? Porque esse Direito que está aí é para isso mesmo. E ele é extremamente bem jogado, bem urdido. É tudo legal. E a legalidade serve para o bem e para o mal. Ou seja, esse Direito é extremamente coerente com o modo de produção social. Ele reforça o processo de dominação.
Repercussão geral
O que é o recurso extraordinário? Você tem uma decisão de um tribunal e você questiona essa decisão dizendo que ela feriu a Constituição. Eu entro com um recurso extraordinário no qual eu vou discutir a constitucionalidade daquela decisão.
Havia milhares de recursos extraordinários. Como impedir essa repetição? A reforma vem e diz que para o recurso ser apreciado, o caso tem que ter repercussão geral. Então, hoje, quando você entra com um recurso extraordinário, você tem que começar o recurso dizendo que a matéria tem repercussão geral de grande importância. E o tribunal tem de decidir se a matéria tem repercussão geral. Se não tiver, o recurso não é apreciado. Se tiver, o recurso é apreciado. E a decisão serve para todos os outros recursos semelhantes que ficam parados no tribunal lá embaixo. O Supremo decide aquele caso e esta decisão vai ser aplicada a todos os outros.
A grande questão é a seguinte: é que cada caso é um caso. Temos que analisar cada caso. Eu temo que esses procedimentos simplificadores impliquem na negação da tramitação constitucional. O que é a tramitação constitucional? É a apreciação do tribunal. Isso vai reduzir, e reduziu já brutalmente, o número de recursos extraordinários, mas pode levar a uma paralisação da Justiça, pois a única maneira de você manter esse dinamismo, manter vivo esse corpo, é apreciar caso a caso.
DIPLOMATIQUE – Quais as mudanças que você consideraria importante fazer no Supremo?
EROS GRAU – O Supremo não é uma instituição de 11 homens, é um conjunto de 11 homens que tomam decisões isoladas, não um tribunal. Produzir decisões coletivamente, essa é a reforma que tem que ser feita. O que tem que existir é a instituição e não 11 homens. Tem que encontrar uma maneira para essas pessoas se relacionarem de modo a compor uma decisão e não 11 decisões. Só haverá uma instituição na medida em que ela, instituição, tome decisões. O que acontece é que hoje você não tem a instituição, você tem 11 juízes tomando decisões isoladas.
Na minha experiência, no tribunal brasileiro há questões sérias, os membros não discutem entre si antes do julgamento, como acontece em todo o mundo. Nos Estados Unidos se reúnem e dizem: eu vou votar nesse sentido, eu vou votar nesse outro, vamos debater. Mas não acontece isso por aqui, o debate virou um debate midiático por alguma razão que eu não sei explicar. Eu vi mais de uma vez comentários durante a sessão, eventualmente um ministro dizer para o outro, “calma ministro, está claro, o senhor já foi claro”. E o sujeito deixar escapar, “mas eu estou falando para o outro público”. Então, o que é que acontece? O juiz começa a falar para a mídia e o discurso do Direito é um discurso diferente do discurso midiático. O tribunal tem que ser um conjunto, e não 11 vozes falando para a televisão.
Eu diria que uma mudança importante seria recuperar a discrição nos processos de julgamentos. Toda a decisão jurídica é terrível, porque ela tem a capacidade de se meter na vida dos outros, de determinar a vida dos outros. E eu também quero ter a intimidade suficiente para tomar as minhas decisões, sobretudo em processos de decisões tão importantes, sem pressão da mídia, por exemplo; nossos julgamentos não podem ser televisionados.
Outra questão é o processo de escolha dos juízes pelo presidente da República A noção de notório saber é complicada. Eu conheço alguns juristas monumentais, juízes do Supremo, que nunca fizeram propaganda de si mesmos, nunca estiveram na ordem do dia. Quer dizer, eles não têm notório saber, eles têm saber. Notório saber e reputação ilibada. Sabe o que é criticável? Lá não tem notório saber. Eu acho que tem reputação ilibada. Mas nem todos têm notório saber.
Vamos começar pelo Legislativo. Tem Tiriricas, tem muita gente safada. Eticamente é muito complicado. Enquanto Legislativo, nós não somos melhores do que nós podemos ser. Eu diria que o poder judiciário também é o que nós somos.
Eu não sou capaz de avaliar a atuação do Judiciário em geral. O meu parecer, ainda que eu tenha várias críticas, é de que é um lugar de gente correta. É claro que outra coisa é o tema da preparação. Eu não sei até que ponto teria sentido levar para um supremo posto gente saída da magistratura. Eu já vi gente saindo da magistratura sem embocadura para ser ministro do Supremo, e já vi gente sair da advocacia com embocadura para ministro do Supremo. Eu acho que não é por aí… Mas no processo de escolha é muito importante mudar as regras. Por que eu não sei como botar as regras? Porque nós estamos diante de critérios desconhecidos. Precisamos de uma indicação que passasse por um processo democrático. Para que esse processo pudesse ser democrático mesmo, teria que ter uma regra básica: quem faz campanha está fora da possibilidade de ser indicado. Exigências como notório saber e reputação ilibada é o mesmo que dizer para o presidente da República: “Faça o que você quiser”. O quadro hoje é o seguinte: tem um cara espetacular, o presidente da República está maravilhado com a simpatia dele, é meu amigo etc. e tal. É mais ou menos como se a gente tivesse combinado se encontrar aqui hoje para ver quem a gente vai convidar para passar o fim de semana na sua casa ou na minha. O presidente da República, antes de indicar, poderia ouvir a Universidade, a Ordem dos Advogados. O processo de escolha nos Estados Unidos é muito semelhante a este aqui, só que lá há o controle.
DIPLOMATIQUE – E quem controla?
EROS GRAU – Quem controla é o Senado. Faz uma sabatina e depois uma votação. Mas não é quem controla o funcionamento. Ninguém controla. Nem deveria ter quem controla. Só na escolha deveria ter controle.
Se você mudar materialmente o processo de escolha, já será ótimo. O Supremo dos anos 1920 é diferente do Supremo dos anos 1940, e assim por diante. É diferente. Quem era de notório saber nos anos 1960? Quem é de notório saber hoje? Está compreendendo o que eu quero dizer? É preciso mudar o processo, alterar os critérios materiais. Vai continuar a ser o presidente da República que indica, vai continuar a haver a sabatina e a análise do Senado? Quanto às campanhas para se tornar juiz do Supremo, é um verdadeiro absurdo dizer que o sujeito está fazendo campanha; quem faz campanha para ir para o Supremo não pode ir para o Supremo.
Bom, pensando mudanças, o primeiro ponto é esse, a discrição; segundo ponto: uma alteração material do processo de escolha do juiz; terceiro: acho que é necessário fazer uma revisão da repercussão geral.
Talvez se possa transformar o Supremo Tribunal numa corte que só julgue matéria constitucional. O Supremo Tribunal Federal é hoje um tribunal criminal, com matéria criminal, e eu acho esse papel muito importante. Acho difícil acabar com a competência criminal do Supremo Tribunal Federal, mas se tivesse um processo de escolha materialmente bem informado para outro tribunal que cuidasse só da parte penal, talvez se pudesse caminhar por aí.
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=828&PHPSESSID=099cbc670a7e8a6c998a4f532aaf76c9

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

DISCURSO DE ABERTURA DO ANO JUDICIÁRIO DE 2012 Min. CEZAR PELUSO

1
DISCURSO DE ABERTURA DO ANO JUDICIÁRIO DE 2012
Min. CEZAR PELUSO
Presidente do STF e do CNJ
Pelo segundo ano consecutivo, tenho a honra de, nesta sessão solene
de abertura dos trabalhos institucionais, dirigir-me à Nação, em
nome do Supremo Tribunal Federal e do Poder Judiciário, perante
os dignos representantes dos Poderes Legislativo e Executivo e do
Senhor Procurador-Geral da República, em celebração tipicamente
republicana, que se renova há 8 anos.
Otimista por convicção e agora detentor de alguma maturidade e
experiência profissional que, a cada década, o tempo insiste em
acrescer-nos à vida, submeto, antes que resultados, algumas
reflexões à consideração, sobretudo, de todas as pessoas que,
destituídas de preconceitos e dotadas de perspectiva histórica,
guardam espírito crítico e objetivo para, na lição de Bobbio,
compreender antes de julgar e julgar antes de criticar fatos e
instituições.
Temos ouvido, com surpresa, que o Poder Judiciário está em crise.
Os mais alarmistas não excepcionam sequer os outros dois Poderes
da República.
Confesso que, alheio ao hábito da só visão catastrófica dos homens e
das coisas, não é assim que percebo o País, nem o Poder Judiciário.
O grande magistrado e jurista, Eugênio Raúl Zaffaroni1, já no final
da década de 90, advertia com absoluta clareza a necessidade de nos
livrarmos da superstição difusa da crise judiciária, porque, “dentro da
relatividade do mundo, o ideal não legitima a perversão do real”. Sábias
palavras, estas.
1 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário – Crise. Acertos e Desacertos. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 1995, p. 23 e 25.
2
Não somos um povo sem memória, nem olhos para ver. Dentro de
poucos dias, comemoram-se vinte anos da apresentação, no
Congresso Nacional, da emenda conhecida como Reforma do
Judiciário (PEC 96-A/1992).
Desde sua aprovação e promulgação (EC nº 45 de 2004), não foram
raras as ocasiões em que aplaudimos todos, com entusiasmo, os
notáveis avanços que propiciou. No seu traçado, o trajeto tem sido
longo e pedregoso. Do tempo em que, como bordão de uso eleitoral,
se depreciou o sistema tachando-o de caixa preta, conquanto
historicamente sempre mais translúcido e fiscalizado que seus
congêneres, passando pelo colapso da demanda, quando atingimos
a insólita proporção de um processo para cada dois brasileiros,
transpusemos grandes incertezas e começamos a construir o futuro.
Nessas duas décadas, transformou-se o Judiciário. É hoje visível
serviço público presente na sociedade brasileira, tão presente, ou,
decerto, mais que os serviços da saúde pública, da educação e da
segurança, como não o podem desmentir os índices disponíveis de
atendimento. E nenhum outro serviço público evoluiu tanto em
todos os sentidos.
Lembro-me bem de, para não ser longo, ter relevado no ano findo,
na abertura do ano judiciário, dois importantes aspectos dessa
vultosa empresa que chamei de a revolução silenciosa do Judiciário.
Qualifiquei como inegáveis, não só o esforço extraordinário de que
deram prova juízes e tribunais, mas, acima de tudo, o empenho e a
sinergia que os comprometeram a todos na prestação da tutela
jurisdicional, sob as múltiplas dimensões em que essa tarefa se
desdobra. Asseverei que foi preciso boa dose de coragem para
reconhecer fragilidades, confessar desacertos, confrontar carências e
propor-lhes remédios viáveis, calcados em experiências controladas
e possibilidades não temerárias, nem aventureiras.
Acima de tudo, porém, dei-lhes testemunho de que, durante a
Conferência Mundial sobre Justiça Constitucional, que, realizada no Rio
3
de Janeiro, no primeiro mês daquele ano, contou com a presença de
mais de 350 pessoas na condição de presidentes e representantes de
cortes constitucionais de todo o mundo, traços peculiares da nossa
Justiça provocaram declarações públicas do mais vivo
reconhecimento estrangeiro, como a transparência dos julgamentos
transmitidos, em tempo real, pela TV Justiça, o desempenho
extraordinário da Justiça Eleitoral, a criação do Conselho Nacional
de Justiça – CNJ e a celebração dos Pactos Republicanos. E nem
cogitei, então, de sublinhar que também somos o único Judiciário
que, para além da TV, expõe seus atos e números na internet,
produzindo o mais elevado nível de legitimidade e transparência
que se possa exigir a um ente público.
Aos Pactos referiram-se os presidentes de outras cortes
constitucionais como expressão maiúscula do amadurecimento do
nosso Estado Democrático de direito, da democracia representativa
e da consciência política dos chefes dos Poderes. E prestigiosos
constitucionalistas e analistas internacionais já haviam apontado
nosso Judiciário como objeto da mais larga demanda, observada no
mundo, para solução dos conflitos intersubjetivos.
Nem custa rememorar, como exercício de reconhecimento das
significativas conquistas e avanços, alguns benefícios concretos que
a reforma do Judiciário e, ao depois, esses expressivos arranjos
institucionais entre os Poderes da República trouxeram à Nação.
Com a promulgação da EC nº 45/2004, tivemos, dentre outros: a
criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e do Conselho
Nacional do Ministério Público; a introdução dos institutos da
súmula vinculante e da repercussão geral; a federalização dos
crimes contra os direitos humanos; a ampliação das prerrogativas
do Ministério Público; e a autonomia funcional e administrativa das
defensorias públicas.
Seguiram-se-lhes os Pactos.
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O primeiro, assinado em 2004, teve por objetivo fundante a
construção de um Judiciário mais rápido e mais sensível às
demandas da cidadania.
Dele advieram, para combater a morosidade dos processos judiciais,
prevenir a multiplicação de demandas em torno do mesmo tema e
aperfeiçoar procedimentos, as seguintes inovações e alterações
legislativas: a previsão de racionalização de processos repetitivos no
STJ; a regulamentação dos institutos da súmula vinculante e da
repercussão geral; a vedação aos órgãos da Justiça do Trabalho para
conhecer de questões já decididas, salvos os casos expressamente
previstos na CLT e a ação rescisória, e a regulamentação do uso do
meio eletrônico na tramitação de processos.
A segunda edição foi assinada em abril de 2009 e tinha por fim
viabilizar sistema de Justiça mais acessível e efetivo.
Apenas no decorrer de 2010, foram aprovadas doze leis e uma
emenda constitucional. Em matéria penal, foi aprovada a realização
de interrogatório por meio do sistema de videoconferência; foi
criminalizado o ingresso de aparelhos de comunicação móvel em
penitenciárias; foi criado, no CNJ, o departamento que monitora e
fiscaliza, agora em caráter permanente e sistemático, o cumprimento
das resoluções e recomendações relativas às prisões provisórias e
definitivas, às medidas de segurança e à internação de adolescentes.
E, aqui, abro parêntese para sobrelevar o fato singular de o
programa do chamado Mutirão Carcerário, realizado por juízes do
CNJ e convocados ad hoc, ter, só nos últimos 20 (vinte) meses,
libertado 21.000 (vinte e um mil) cidadãos presos ilegalmente, sem
prejuízo da concessão de incontáveis benefícios legais a que outros
encarcerados faziam jus. Não será demasia compará-lo à libertação
de prisioneiros em condições inóspitas de campos de concentração.
Tal obra do Judiciário, insólita no concerto dos países estruturados
sob a supremacia da ordem jurídico-constitucional, é, na sua
vertente positiva de libertação, motivo permanente de orgulho e de
celebração cívica e sintoma exuberante de saúde democrática.
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Entre outros temas regulados estão, ainda: a participação de
defensores públicos em atos extrajudiciais; a organização da
Defensoria Pública da União; a criação dos Juizados Especiais da
Fazenda Pública no âmbito dos Estados e Municípios, e a criação de
230 novas Varas Federais, destinadas à interiorização da Justiça
Federal de primeiro grau e à implantação dos Juizados Especiais
Federais, no interior do Brasil, medida esta de extrema importância
para a população carente.
No ano passado, ainda por ocasião da abertura do ano judiciário,
tomei a iniciativa de lançar, de modo formal, a idéia de firmarmos o
III Pacto Republicano, para, em substância, dar continuidade ao
processo de aprimoramento da ordem jurídica e consolidar a
modernização da máquina judiciária. Reprisei tal proposta também
na cerimônia de abertura do ano legislativo de 2011.
E, embora não tenhamos assinado a terceira edição, o que, espero,
ainda possamos fazer em breve, em 2011 várias medidas já
idealizadas foram implementadas: instituição da Certidão Negativa
de Débitos Trabalhistas – CNDT, cuja apresentação tem que
anteceder a contratação com o Poder Público; a regulamentação do
chamado teletrabalho; a possibilidade de troca de parte da pena dos
detentos por estudo ou trabalho; a instituição de medidas cautelares
que reconhecem os mecanismos usados pelo juiz durante o processo
para garantir a condução da investigação criminal e a preservação
da ordem pública, tais como o monitoramento eletrônico e o
recolhimento domiciliar no período noturno; a lei que dispõe sobre
o processo e julgamento da representação interventiva perante o
Supremo Tribunal Federal, e a lei que disciplina o acesso à
informação.
À luz desse breve relato, circunscrito à modernização do arcabouço
normativo, é, pois, quando menos, exigência de justiça primária
reconhecer que os Poderes da República avançaram, a passos largos,
em menos de uma década e especialmente nos dois últimos anos, no
aprimoramento do Judiciário.
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Mas não foi só.
Como todos sabemos, ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, ao
lado do exercício do controle administrativo, financeiro e disciplinar
dos órgãos e membros da magistratura, compete o planejamento
político e estratégico de todo o Judiciário.
Embora as tarefas fiscalizatórias chamem mais a atenção da
sociedade, a atuação do CNJ como orientador da política nacional
tem sido decisiva para os progressos do Poder Judiciário,
especialmente num país continental como o nosso, com tantas
diferenças regionais.
Foi o que não me escapou como relator, que fui, da ADI nº 3367-DF,
interposta pela AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros.
Em meu voto, que afirmou a constitucionalidade do CNJ, anotei:
“(...) sem profanar os limites constitucionais da independência do
Judiciário, agiu dentro de sua competência reformadora o poder
constituinte derivado, ao outorgar ao Conselho Nacional de Justiça o
proeminente papel de fiscal das atividades administrativas e financeiras
daquele Poder. A bem da verdade, mais que encargo de controle, o
Conselho recebeu aí uma alta função política de aprimoramento do
autogoverno do Judiciário cujas estruturas burocráticas dispersas
inviabilizam o esboço de uma estratégia político-institucional de âmbito
nacional. São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um
órgão superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas
e elaborar programas que, nos limites de suas responsabilidades
constitucionais, dêem respostas dinâmicas e eficazes aos múltiplos
problemas comuns (...).”
Criado em 31 de dezembro de 2004 e instalado em 14 de junho de
2005, é inegável que, nestes quase 7 anos de atuação, com gestores e
colaboradores de diferentes perfis, o CNJ tem sido propulsor do
desenvolvimento do Poder Judiciário.
A abrangência de seus programas, projetos, ações e campanhas fala
por si. Cito alguns já bem conhecidos:
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Programas: Justiça ao Jovem; Justiça nas Escolas; Advocacia
Voluntária; Casas de Justiça e Cidadania; Justiça Aqui (instalado na
Comunidade do Complexo do Alemão e da Penha); Gestão
Documental - Proname; Espaço Livre; Começar de Novo;
Campanhas: Conciliar é a forma mais rápida de resolver conflitos e
Maria da Penha;
Cadastros Nacionais: de Condenações Cíveis por Atos de
Improbidade Administrativa; de Adoção; de Crianças e
Adolescentes Acolhidos e de Entes Públicos;
Projeto: Cidadania - Direito de Todos;
Mutirões: Judiciário em Dia; Mutirão da Cidadania; Mutirão da
Conciliação;
Projetos e Ações: Calculadora de Execução Penal; Geopresídeos –
Radiografia do Sistema Carcerário; Justiça em Números –
Indicadores do Poder Judiciário; Numeração Processual Única;
Tabelas Processuais Unificadas e PJe – Processo Judicial eletrônico.
Ainda há muito por avançar. Este fato, porém, não deve obscurecer
os progressos já alcançados.
Como escreveu o poeta espanhol António Machado, “caminhante,
não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. E, para a construção do
caminho do Judiciário, o debate público é mais do que bem-vindo. É
fundamental. Saliento, contudo, um aspecto que me parece ausente
no presente contexto: o debate atual é resultado dos progressos
obtidos pelo Judiciário, e não, sintoma de crise ou deficiência do
sistema. O aumento da transparência e a abertura do Judiciário às
contribuições dos outros Poderes e da sociedade é que estão à raiz
do debate sobre a modernização já em curso.
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A verdade é que o Poder Judiciário - tido por muitos, antes da
reforma, como periférico e opaco -, assumiu grandiosa dimensão
político-institucional, entrando a ocupar espaço substantivo nos
debates nacionais e a inquestionável condição de fiador da
consolidação do processo democrático.
A explosão de demandas, havida nos últimos 20 anos, de um lado
revela uma sociedade mais consciente de seus direitos, e, de outro
deixa transparecer que o Judiciário ainda é percebido como a
instância extrema de que dispõe o cidadão para ver assegurados,
dentre outros, direitos fundamentais mínimos, como saúde e
educação. A magistratura deu vida aos direitos dos consumidores,
das crianças, dos adolescentes, das mulheres, do meio ambiente, da
cidadania. Com isso, aumentou a segurança jurídica, gerando
confiança aos investimentos estrangeiros e ao empresariado
nacional, como fator importante no processo de desenvolvimento
socioeconômico, e tornou-se mais racional o sistema a serviço do
jurisdicionado.
É, como se fora contradição, neste âmbito aparentemente acanhado
da rotina, que o Poder Judiciário revela seu papel essencial na
garantia e no desenvolvimento do projeto de convivência ética, em
que se traduz e resume a extraordinária experiência da vida humana
em sociedade. Ao propósito, muitos anos atrás, em discurso de
saudação a novos magistrados paulistas, em nome da banca
examinadora, ponderei com atualidade: “Disseram alhures que é
medíocre e inofensivo vosso poder, como delegados do povo e
defensores das liberdades públicas. De fato o é, se sois tentados a
embriagar-vos com um prestígio desproporcional. Mas é grande e
insubstituível, se tendes consciência viva de que, no seu exercício
modesto e cotidiano, esquecido pelas temáticas retumbantes da
sociologia do poder, renovais o milagre quase imperceptível da
concretização histórica do Estado Democrático de direito, cuja
característica básica está em submeter a todos, governantes e
governados, sem distinção de classes ou estamentos, cargos ou posições,
ao império soberano do ordenamento jurídico, concebido como
emanação regrada e estável da vontade popular. Infeliz do povo que o
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não percebe nem defende. Desventurado o juiz que o não compreende
nem observa.
Obrigar a pagar a quem deva, livrar o inocente, dividir o acervo aos
herdeiros discordantes, reparar a honra violada, reempossar o esbulhado,
condenar o criminoso, é esse poder, medíocre e inofensivo, se quiserem,
que nos salva do arbítrio, garantindo-nos a certeza de uma ação fiel a si
mesma e sem a qual a vontade humana se torna errática e dispersa, e
cada pessoa se degrada em objeto da ação alheia.”2
É, para além da grave tarefa de contenção do poder legal instituído,
essa função ordinária, diuturna, quase oculta, mas insubstituível em
termos democráticos, desempenhada com independência e coragem,
que o assassinato de quatro magistrados em passado próximo, em
razão de seu exercício, não arrefeceu nem intimidou, que a
magistratura reafirma, quotidiana e silenciosamente, os valores
supremos da vocação e da vivência democráticas, assegurando a
cada homem, qualquer que seja a condição social ou econômica, as
condições mínimas de realização de seu projeto histórico pessoal e,
pois, da consciência de sua dignidade como ser humano.
Esse mister não tem preço, nem sucedâneo.
Fomos alçados à posição estratégica de árbitro efetivo entre os
outros dois Poderes e entre estes e a sociedade.
E o que nos legitima a ocupar esse papel é a sujeição incondicional
dos juízes à Constituição. Porque os direitos fundamentais são
garantidos a todos e a cada um, ainda contra as expectativas ou
pretensões da maioria, a independência do Poder Judiciário tanto
mais se afirma quanto seja maior sua capacidade de atuar
contramajoritariamente.
Não é por outra razão que, em tempos de tão profundas
transformações políticas, sociais e econômicas, o Supremo Tribunal
Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, tem sido acionado
para o julgamento de variados assuntos de relevância para o País:
demarcação de terras indígenas, importação de pneus, realização de
2 Uma palavra aos novos juízes. São Paulo: Apamagis, 1994, p. 9.
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pesquisas com células-tronco embrionárias, sistema de cotas no
âmbito do ensino, manifestações em favor da descriminalização do
consumo de drogas, união homoafetiva, voto impresso, a chamada
“lei da ficha limpa”, entre outros.
Li com muita satisfação, que ora divido com os Senhores, a análise
dos renomados constitucionalista e professores, Luis Roberto
Barroso e Eduardo Mendonça, sobre a atuação desta Corte em 2011.
Em artigo intitulado “STF foi permeável à opinião pública, sem ser
subserviente”, assinalaram:
“O Judiciário deve ser permeável à opinião pública, o que não significa
que deva ser subserviente. O diálogo de que se falou não pode se converter
em um monólogo à moda de sermão, em que magistrados iluminados revelam
ao povo a verdade do Direito. Por outro lado, tampouco se espera que eles
decidam pensando nas manchetes do dia seguinte ou reagindo às do dia
anterior, o que os transformaria em oficiais de justiça das redações de jornal.
O que se tem, portanto, é um equilíbrio delicado e dinâmico, em que se
alternam momentos de ativismo e contenção, bem como momentos de
alinhamento e desalinhamento com a vontade majoritária.
(...)
Por outro lado, o STF teve a firmeza necessária para, em diversos
momentos, atuar de forma genuinamente contramajoritária, e isso em
questões de grande repercussão. Foi o caso da decisão histórica que
reconheceu as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, em que a Corte
se posicionou de maneira enfática a favor da tese que desagradava cerca de
metade da população brasileira, em diferentes graus de intensidade. E mais
ainda no julgamento em que se decidiu pela inaplicabilidade da chamada Lei
da Ficha Limpa às eleições de 2010 por conta da anterioridade eleitoral
prevista no art. 16 da Constituição.”
O papel dito antimajoritário ou contramajoritário, em especial, das
cortes constitucionais, não significa apenas dever de tutelar direitos
das minorias perante risco de opressão da maioria, mas também de
enfrentar, não críticas ditadas pelo interesse público, mas pressões
impróprias tendentes a constranger juízes e ministros a adotarem
interpretações que lhes repugnam à consciência. O dissenso
hermenêutico faz parte da discutibilidade das questões jurídicas, na
11
vida republicana. Pressões, todavia, são manifestação de
autoritarismo e desrespeito à convivência democrática.
Pois bem. O Poder Judiciário ganhou estatura, enfrentou reformas,
aproximou-se da sociedade, mas não é perfeito. Ainda que uma vida
exemplar e irrepreensível em todos os aspectos constitua, para os
magistrados, como faz muitos anos o apregoo, um horizonte ou
ideal permanente, a perfeição não é predicado inato de nenhum
segmento da sociedade, composta por seres todos
irremediavelmente falíveis. É desta matéria prima comum, gravada
por tendência filogenética perversa, que certa concepção religiosa
denomina de pecado original, que é formada a magistratura, tão
imperfeita, nos ingredientes humanos, quanto todos os demais
estratos da sociedade, sem exceção alguma, mas cuja assombrosa
maioria guarda, com fidelidade, os princípios morais na profissão.
Não surpreende, pois, se ressinta de defeitos, alguns arraigados, e
não seja invulnerável à corrupção. Mas esta, a corrupção, não é
objeto de geração espontânea, nem o resultado de forças estranhas à
dinâmica social, senão que é produto mesmo das sociedades cuja
cultura está em privilegiar, como objetivo primordial da vida, a
conquista e o acúmulo, por qualquer método, de bens materiais, em
dano do cultivo dos valores da ética e da decência pública e privada.
Deve, no entanto, como ninguém discorda, ser combatida sem
tréguas, segundo os padrões e os limites da ética e do ordenamento
jurídico. E é o que, desde as origens, tem feito a magistratura como
instituição, a qual foi a primeira a criar, há séculos, na vigência
ainda das Ordenações Afonsinas, as corregedorias ou os juízes
corregedores, com o propósito específico de velar pela integridade
de uma função indispensável do Estado. A Controladoria-Geral da
União data de poucos anos e, a despeito de ser hoje comandada por
impoluto juiz de direito aposentado, que nela continua a honrar sua
toga, dispõe de competência curta e ação limitada. As corregedorias
do Congresso não são muito mais antigas, nem mais poderosas.
Nenhum dos Poderes da República se reveste do portentoso aparato
de controle que, ao lado da ação dos patronos das partes e dos
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representantes do Ministério Público, no âmbito dos processos,
cerca o Judiciário mediante as corregedorias locais e dos tribunais
superiores e do Conselho Nacional de Justiça, que é, à margem do
contexto teórico do equilíbrio constitucional, o único órgão
integrado por agentes externos a exercer contínua e rigorosa
fiscalização do próprio Poder.
E, no debate apaixonado em que se converteu questão jurídica
submetida ao juízo desta Corte, acerca do alcance e limites das
competências constitucionais do CNJ, perde-se de vista que seu
âmago não está em discutir a necessidade de punição de abusos,
mas apenas em saber que órgão ou órgãos deve puni-los. Entre uma
e outra coisas vai uma distância considerável.
Convém chamar a atenção para um segundo aspecto que ressalta a
artificialidade da propalada crise corrente do Judiciário. A despeito
de suas deficiências reais que, consoante dados irretorquíveis, vem
logrando superar no ritmo de suas forças e recursos morais e
materiais, o sistema judicial não perdeu a credibilidade no
desempenho da função jurisdicional e do seu papel de pacificador
dos conflitos sociais, como o demonstra a já mencionada explosão
de demandas judiciais. Para não ser ainda mais prolixo, limito-me a
registrar que, segundo as estatísticas provisórias do programa
Justiça em Números, cujas informações só se completarão em fins do
corrente mês (art. 3º da Resolução nº 76/2009), as sentenças
proferidas só no primeiro semestre do ano passado atingiram, como
reflexo da inacreditável e crescente quantidade de causas pendentes,
a cifra de 11.660.237, que, por estimativa, deve superar as 22.788.773
prolatadas no ano anterior. Em 2010, havia 60.178.413 causas
pendentes, tendo-se observado, em 2011, um aumento aproximado
de 4.000.000 de processos em curso. O povo confia, pois, na Justiça
brasileira. Se não confiasse, não acorreria ao Judiciário em escala tão
descomunal.
E, como vimos brevemente, tem razões de sobra para confiar neste
que é, conforme com todos os dados estatísticos e os notórios
avanços institucionais, o melhor Judiciário que já teve o País,
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sobretudo com a responsabilidade de resolver conflitos de uma
sociedade ainda desigual, cuja ansiedade acumulada a leva a cobrar
injustiças de tempos passados, a título de reparação. Nenhum,
nenhum dos males que ainda atormentam a sociedade brasileira
pode ser imputado ao Poder Judiciário. Nem sequer o sentimento
legítimo de impunidade, que se deve menos à inércia natural dos
órgãos jurisdicionais que a um conjunto de fatores e atores
independentes. Juiz não faz inquérito, nem produz prova de
acusação. Nem a Justiça criminal foi inventada só para punir, senão
para julgar segundo a lei.
Após mais de 44 anos de magistratura e já próximo de, com a fronte
erguida, deixar esta Corte, quero assegurar a todos os cidadãos
brasileiros, que, servindo-lhes aos projetos de uma vida digna de ser
vivida, os juízes continuaremos a cumprir nossa função com
independência, altivez e sobranceria, guardando a Constituição e o
ordenamento jurídico, sem prescindir da humildade e da coragem
necessárias às correções de percurso e ao aperfeiçoamento da
Justiça, mas também sem temor de defender, com a compostura que
nos pede o cargo, a honradez de nossos quadros e o prestígio da
instituição.
Só uma nação suicida ingressaria voluntariamente em um processo
de degradação do Poder Judiciário. Esse caminho nefasto, sequer
imaginável na realidade brasileira, conduziria a uma situação
inconcebível de quebra da autoridade ética e jurídica das decisões
judiciais que, aniquilando a segurança jurídica, incentivando
violência contra os juízes e exacerbando a conflitualidade social em
grau insuportável, significaria retorno à massa informe da barbárie.
Não é esse o nosso destino.
Com estas palavras, dou por aberto o ano judiciário de 2012. Bom
trabalho a todos.