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DISCURSO DE ABERTURA DO ANO JUDICIÁRIO DE 2012
Min. CEZAR PELUSO
Presidente do STF e do CNJ
Pelo segundo ano consecutivo, tenho a honra de, nesta sessão solene
de abertura dos trabalhos institucionais, dirigir-me à Nação, em
nome do Supremo Tribunal Federal e do Poder Judiciário, perante
os dignos representantes dos Poderes Legislativo e Executivo e do
Senhor Procurador-Geral da República, em celebração tipicamente
republicana, que se renova há 8 anos.
Otimista por convicção e agora detentor de alguma maturidade e
experiência profissional que, a cada década, o tempo insiste em
acrescer-nos à vida, submeto, antes que resultados, algumas
reflexões à consideração, sobretudo, de todas as pessoas que,
destituídas de preconceitos e dotadas de perspectiva histórica,
guardam espírito crítico e objetivo para, na lição de Bobbio,
compreender antes de julgar e julgar antes de criticar fatos e
instituições.
Temos ouvido, com surpresa, que o Poder Judiciário está em crise.
Os mais alarmistas não excepcionam sequer os outros dois Poderes
da República.
Confesso que, alheio ao hábito da só visão catastrófica dos homens e
das coisas, não é assim que percebo o País, nem o Poder Judiciário.
O grande magistrado e jurista, Eugênio Raúl Zaffaroni1, já no final
da década de 90, advertia com absoluta clareza a necessidade de nos
livrarmos da superstição difusa da crise judiciária, porque, “dentro da
relatividade do mundo, o ideal não legitima a perversão do real”. Sábias
palavras, estas.
1 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário – Crise. Acertos e Desacertos. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 1995, p. 23 e 25.
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Não somos um povo sem memória, nem olhos para ver. Dentro de
poucos dias, comemoram-se vinte anos da apresentação, no
Congresso Nacional, da emenda conhecida como Reforma do
Judiciário (PEC 96-A/1992).
Desde sua aprovação e promulgação (EC nº 45 de 2004), não foram
raras as ocasiões em que aplaudimos todos, com entusiasmo, os
notáveis avanços que propiciou. No seu traçado, o trajeto tem sido
longo e pedregoso. Do tempo em que, como bordão de uso eleitoral,
se depreciou o sistema tachando-o de caixa preta, conquanto
historicamente sempre mais translúcido e fiscalizado que seus
congêneres, passando pelo colapso da demanda, quando atingimos
a insólita proporção de um processo para cada dois brasileiros,
transpusemos grandes incertezas e começamos a construir o futuro.
Nessas duas décadas, transformou-se o Judiciário. É hoje visível
serviço público presente na sociedade brasileira, tão presente, ou,
decerto, mais que os serviços da saúde pública, da educação e da
segurança, como não o podem desmentir os índices disponíveis de
atendimento. E nenhum outro serviço público evoluiu tanto em
todos os sentidos.
Lembro-me bem de, para não ser longo, ter relevado no ano findo,
na abertura do ano judiciário, dois importantes aspectos dessa
vultosa empresa que chamei de a revolução silenciosa do Judiciário.
Qualifiquei como inegáveis, não só o esforço extraordinário de que
deram prova juízes e tribunais, mas, acima de tudo, o empenho e a
sinergia que os comprometeram a todos na prestação da tutela
jurisdicional, sob as múltiplas dimensões em que essa tarefa se
desdobra. Asseverei que foi preciso boa dose de coragem para
reconhecer fragilidades, confessar desacertos, confrontar carências e
propor-lhes remédios viáveis, calcados em experiências controladas
e possibilidades não temerárias, nem aventureiras.
Acima de tudo, porém, dei-lhes testemunho de que, durante a
Conferência Mundial sobre Justiça Constitucional, que, realizada no Rio
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de Janeiro, no primeiro mês daquele ano, contou com a presença de
mais de 350 pessoas na condição de presidentes e representantes de
cortes constitucionais de todo o mundo, traços peculiares da nossa
Justiça provocaram declarações públicas do mais vivo
reconhecimento estrangeiro, como a transparência dos julgamentos
transmitidos, em tempo real, pela TV Justiça, o desempenho
extraordinário da Justiça Eleitoral, a criação do Conselho Nacional
de Justiça – CNJ e a celebração dos Pactos Republicanos. E nem
cogitei, então, de sublinhar que também somos o único Judiciário
que, para além da TV, expõe seus atos e números na internet,
produzindo o mais elevado nível de legitimidade e transparência
que se possa exigir a um ente público.
Aos Pactos referiram-se os presidentes de outras cortes
constitucionais como expressão maiúscula do amadurecimento do
nosso Estado Democrático de direito, da democracia representativa
e da consciência política dos chefes dos Poderes. E prestigiosos
constitucionalistas e analistas internacionais já haviam apontado
nosso Judiciário como objeto da mais larga demanda, observada no
mundo, para solução dos conflitos intersubjetivos.
Nem custa rememorar, como exercício de reconhecimento das
significativas conquistas e avanços, alguns benefícios concretos que
a reforma do Judiciário e, ao depois, esses expressivos arranjos
institucionais entre os Poderes da República trouxeram à Nação.
Com a promulgação da EC nº 45/2004, tivemos, dentre outros: a
criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e do Conselho
Nacional do Ministério Público; a introdução dos institutos da
súmula vinculante e da repercussão geral; a federalização dos
crimes contra os direitos humanos; a ampliação das prerrogativas
do Ministério Público; e a autonomia funcional e administrativa das
defensorias públicas.
Seguiram-se-lhes os Pactos.
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O primeiro, assinado em 2004, teve por objetivo fundante a
construção de um Judiciário mais rápido e mais sensível às
demandas da cidadania.
Dele advieram, para combater a morosidade dos processos judiciais,
prevenir a multiplicação de demandas em torno do mesmo tema e
aperfeiçoar procedimentos, as seguintes inovações e alterações
legislativas: a previsão de racionalização de processos repetitivos no
STJ; a regulamentação dos institutos da súmula vinculante e da
repercussão geral; a vedação aos órgãos da Justiça do Trabalho para
conhecer de questões já decididas, salvos os casos expressamente
previstos na CLT e a ação rescisória, e a regulamentação do uso do
meio eletrônico na tramitação de processos.
A segunda edição foi assinada em abril de 2009 e tinha por fim
viabilizar sistema de Justiça mais acessível e efetivo.
Apenas no decorrer de 2010, foram aprovadas doze leis e uma
emenda constitucional. Em matéria penal, foi aprovada a realização
de interrogatório por meio do sistema de videoconferência; foi
criminalizado o ingresso de aparelhos de comunicação móvel em
penitenciárias; foi criado, no CNJ, o departamento que monitora e
fiscaliza, agora em caráter permanente e sistemático, o cumprimento
das resoluções e recomendações relativas às prisões provisórias e
definitivas, às medidas de segurança e à internação de adolescentes.
E, aqui, abro parêntese para sobrelevar o fato singular de o
programa do chamado Mutirão Carcerário, realizado por juízes do
CNJ e convocados ad hoc, ter, só nos últimos 20 (vinte) meses,
libertado 21.000 (vinte e um mil) cidadãos presos ilegalmente, sem
prejuízo da concessão de incontáveis benefícios legais a que outros
encarcerados faziam jus. Não será demasia compará-lo à libertação
de prisioneiros em condições inóspitas de campos de concentração.
Tal obra do Judiciário, insólita no concerto dos países estruturados
sob a supremacia da ordem jurídico-constitucional, é, na sua
vertente positiva de libertação, motivo permanente de orgulho e de
celebração cívica e sintoma exuberante de saúde democrática.
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Entre outros temas regulados estão, ainda: a participação de
defensores públicos em atos extrajudiciais; a organização da
Defensoria Pública da União; a criação dos Juizados Especiais da
Fazenda Pública no âmbito dos Estados e Municípios, e a criação de
230 novas Varas Federais, destinadas à interiorização da Justiça
Federal de primeiro grau e à implantação dos Juizados Especiais
Federais, no interior do Brasil, medida esta de extrema importância
para a população carente.
No ano passado, ainda por ocasião da abertura do ano judiciário,
tomei a iniciativa de lançar, de modo formal, a idéia de firmarmos o
III Pacto Republicano, para, em substância, dar continuidade ao
processo de aprimoramento da ordem jurídica e consolidar a
modernização da máquina judiciária. Reprisei tal proposta também
na cerimônia de abertura do ano legislativo de 2011.
E, embora não tenhamos assinado a terceira edição, o que, espero,
ainda possamos fazer em breve, em 2011 várias medidas já
idealizadas foram implementadas: instituição da Certidão Negativa
de Débitos Trabalhistas – CNDT, cuja apresentação tem que
anteceder a contratação com o Poder Público; a regulamentação do
chamado teletrabalho; a possibilidade de troca de parte da pena dos
detentos por estudo ou trabalho; a instituição de medidas cautelares
que reconhecem os mecanismos usados pelo juiz durante o processo
para garantir a condução da investigação criminal e a preservação
da ordem pública, tais como o monitoramento eletrônico e o
recolhimento domiciliar no período noturno; a lei que dispõe sobre
o processo e julgamento da representação interventiva perante o
Supremo Tribunal Federal, e a lei que disciplina o acesso à
informação.
À luz desse breve relato, circunscrito à modernização do arcabouço
normativo, é, pois, quando menos, exigência de justiça primária
reconhecer que os Poderes da República avançaram, a passos largos,
em menos de uma década e especialmente nos dois últimos anos, no
aprimoramento do Judiciário.
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Mas não foi só.
Como todos sabemos, ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, ao
lado do exercício do controle administrativo, financeiro e disciplinar
dos órgãos e membros da magistratura, compete o planejamento
político e estratégico de todo o Judiciário.
Embora as tarefas fiscalizatórias chamem mais a atenção da
sociedade, a atuação do CNJ como orientador da política nacional
tem sido decisiva para os progressos do Poder Judiciário,
especialmente num país continental como o nosso, com tantas
diferenças regionais.
Foi o que não me escapou como relator, que fui, da ADI nº 3367-DF,
interposta pela AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros.
Em meu voto, que afirmou a constitucionalidade do CNJ, anotei:
“(...) sem profanar os limites constitucionais da independência do
Judiciário, agiu dentro de sua competência reformadora o poder
constituinte derivado, ao outorgar ao Conselho Nacional de Justiça o
proeminente papel de fiscal das atividades administrativas e financeiras
daquele Poder. A bem da verdade, mais que encargo de controle, o
Conselho recebeu aí uma alta função política de aprimoramento do
autogoverno do Judiciário cujas estruturas burocráticas dispersas
inviabilizam o esboço de uma estratégia político-institucional de âmbito
nacional. São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um
órgão superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas
e elaborar programas que, nos limites de suas responsabilidades
constitucionais, dêem respostas dinâmicas e eficazes aos múltiplos
problemas comuns (...).”
Criado em 31 de dezembro de 2004 e instalado em 14 de junho de
2005, é inegável que, nestes quase 7 anos de atuação, com gestores e
colaboradores de diferentes perfis, o CNJ tem sido propulsor do
desenvolvimento do Poder Judiciário.
A abrangência de seus programas, projetos, ações e campanhas fala
por si. Cito alguns já bem conhecidos:
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Programas: Justiça ao Jovem; Justiça nas Escolas; Advocacia
Voluntária; Casas de Justiça e Cidadania; Justiça Aqui (instalado na
Comunidade do Complexo do Alemão e da Penha); Gestão
Documental - Proname; Espaço Livre; Começar de Novo;
Campanhas: Conciliar é a forma mais rápida de resolver conflitos e
Maria da Penha;
Cadastros Nacionais: de Condenações Cíveis por Atos de
Improbidade Administrativa; de Adoção; de Crianças e
Adolescentes Acolhidos e de Entes Públicos;
Projeto: Cidadania - Direito de Todos;
Mutirões: Judiciário em Dia; Mutirão da Cidadania; Mutirão da
Conciliação;
Projetos e Ações: Calculadora de Execução Penal; Geopresídeos –
Radiografia do Sistema Carcerário; Justiça em Números –
Indicadores do Poder Judiciário; Numeração Processual Única;
Tabelas Processuais Unificadas e PJe – Processo Judicial eletrônico.
Ainda há muito por avançar. Este fato, porém, não deve obscurecer
os progressos já alcançados.
Como escreveu o poeta espanhol António Machado, “caminhante,
não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. E, para a construção do
caminho do Judiciário, o debate público é mais do que bem-vindo. É
fundamental. Saliento, contudo, um aspecto que me parece ausente
no presente contexto: o debate atual é resultado dos progressos
obtidos pelo Judiciário, e não, sintoma de crise ou deficiência do
sistema. O aumento da transparência e a abertura do Judiciário às
contribuições dos outros Poderes e da sociedade é que estão à raiz
do debate sobre a modernização já em curso.
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A verdade é que o Poder Judiciário - tido por muitos, antes da
reforma, como periférico e opaco -, assumiu grandiosa dimensão
político-institucional, entrando a ocupar espaço substantivo nos
debates nacionais e a inquestionável condição de fiador da
consolidação do processo democrático.
A explosão de demandas, havida nos últimos 20 anos, de um lado
revela uma sociedade mais consciente de seus direitos, e, de outro
deixa transparecer que o Judiciário ainda é percebido como a
instância extrema de que dispõe o cidadão para ver assegurados,
dentre outros, direitos fundamentais mínimos, como saúde e
educação. A magistratura deu vida aos direitos dos consumidores,
das crianças, dos adolescentes, das mulheres, do meio ambiente, da
cidadania. Com isso, aumentou a segurança jurídica, gerando
confiança aos investimentos estrangeiros e ao empresariado
nacional, como fator importante no processo de desenvolvimento
socioeconômico, e tornou-se mais racional o sistema a serviço do
jurisdicionado.
É, como se fora contradição, neste âmbito aparentemente acanhado
da rotina, que o Poder Judiciário revela seu papel essencial na
garantia e no desenvolvimento do projeto de convivência ética, em
que se traduz e resume a extraordinária experiência da vida humana
em sociedade. Ao propósito, muitos anos atrás, em discurso de
saudação a novos magistrados paulistas, em nome da banca
examinadora, ponderei com atualidade: “Disseram alhures que é
medíocre e inofensivo vosso poder, como delegados do povo e
defensores das liberdades públicas. De fato o é, se sois tentados a
embriagar-vos com um prestígio desproporcional. Mas é grande e
insubstituível, se tendes consciência viva de que, no seu exercício
modesto e cotidiano, esquecido pelas temáticas retumbantes da
sociologia do poder, renovais o milagre quase imperceptível da
concretização histórica do Estado Democrático de direito, cuja
característica básica está em submeter a todos, governantes e
governados, sem distinção de classes ou estamentos, cargos ou posições,
ao império soberano do ordenamento jurídico, concebido como
emanação regrada e estável da vontade popular. Infeliz do povo que o
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não percebe nem defende. Desventurado o juiz que o não compreende
nem observa.
Obrigar a pagar a quem deva, livrar o inocente, dividir o acervo aos
herdeiros discordantes, reparar a honra violada, reempossar o esbulhado,
condenar o criminoso, é esse poder, medíocre e inofensivo, se quiserem,
que nos salva do arbítrio, garantindo-nos a certeza de uma ação fiel a si
mesma e sem a qual a vontade humana se torna errática e dispersa, e
cada pessoa se degrada em objeto da ação alheia.”2
É, para além da grave tarefa de contenção do poder legal instituído,
essa função ordinária, diuturna, quase oculta, mas insubstituível em
termos democráticos, desempenhada com independência e coragem,
que o assassinato de quatro magistrados em passado próximo, em
razão de seu exercício, não arrefeceu nem intimidou, que a
magistratura reafirma, quotidiana e silenciosamente, os valores
supremos da vocação e da vivência democráticas, assegurando a
cada homem, qualquer que seja a condição social ou econômica, as
condições mínimas de realização de seu projeto histórico pessoal e,
pois, da consciência de sua dignidade como ser humano.
Esse mister não tem preço, nem sucedâneo.
Fomos alçados à posição estratégica de árbitro efetivo entre os
outros dois Poderes e entre estes e a sociedade.
E o que nos legitima a ocupar esse papel é a sujeição incondicional
dos juízes à Constituição. Porque os direitos fundamentais são
garantidos a todos e a cada um, ainda contra as expectativas ou
pretensões da maioria, a independência do Poder Judiciário tanto
mais se afirma quanto seja maior sua capacidade de atuar
contramajoritariamente.
Não é por outra razão que, em tempos de tão profundas
transformações políticas, sociais e econômicas, o Supremo Tribunal
Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, tem sido acionado
para o julgamento de variados assuntos de relevância para o País:
demarcação de terras indígenas, importação de pneus, realização de
2 Uma palavra aos novos juízes. São Paulo: Apamagis, 1994, p. 9.
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pesquisas com células-tronco embrionárias, sistema de cotas no
âmbito do ensino, manifestações em favor da descriminalização do
consumo de drogas, união homoafetiva, voto impresso, a chamada
“lei da ficha limpa”, entre outros.
Li com muita satisfação, que ora divido com os Senhores, a análise
dos renomados constitucionalista e professores, Luis Roberto
Barroso e Eduardo Mendonça, sobre a atuação desta Corte em 2011.
Em artigo intitulado “STF foi permeável à opinião pública, sem ser
subserviente”, assinalaram:
“O Judiciário deve ser permeável à opinião pública, o que não significa
que deva ser subserviente. O diálogo de que se falou não pode se converter
em um monólogo à moda de sermão, em que magistrados iluminados revelam
ao povo a verdade do Direito. Por outro lado, tampouco se espera que eles
decidam pensando nas manchetes do dia seguinte ou reagindo às do dia
anterior, o que os transformaria em oficiais de justiça das redações de jornal.
O que se tem, portanto, é um equilíbrio delicado e dinâmico, em que se
alternam momentos de ativismo e contenção, bem como momentos de
alinhamento e desalinhamento com a vontade majoritária.
(...)
Por outro lado, o STF teve a firmeza necessária para, em diversos
momentos, atuar de forma genuinamente contramajoritária, e isso em
questões de grande repercussão. Foi o caso da decisão histórica que
reconheceu as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, em que a Corte
se posicionou de maneira enfática a favor da tese que desagradava cerca de
metade da população brasileira, em diferentes graus de intensidade. E mais
ainda no julgamento em que se decidiu pela inaplicabilidade da chamada Lei
da Ficha Limpa às eleições de 2010 por conta da anterioridade eleitoral
prevista no art. 16 da Constituição.”
O papel dito antimajoritário ou contramajoritário, em especial, das
cortes constitucionais, não significa apenas dever de tutelar direitos
das minorias perante risco de opressão da maioria, mas também de
enfrentar, não críticas ditadas pelo interesse público, mas pressões
impróprias tendentes a constranger juízes e ministros a adotarem
interpretações que lhes repugnam à consciência. O dissenso
hermenêutico faz parte da discutibilidade das questões jurídicas, na
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vida republicana. Pressões, todavia, são manifestação de
autoritarismo e desrespeito à convivência democrática.
Pois bem. O Poder Judiciário ganhou estatura, enfrentou reformas,
aproximou-se da sociedade, mas não é perfeito. Ainda que uma vida
exemplar e irrepreensível em todos os aspectos constitua, para os
magistrados, como faz muitos anos o apregoo, um horizonte ou
ideal permanente, a perfeição não é predicado inato de nenhum
segmento da sociedade, composta por seres todos
irremediavelmente falíveis. É desta matéria prima comum, gravada
por tendência filogenética perversa, que certa concepção religiosa
denomina de pecado original, que é formada a magistratura, tão
imperfeita, nos ingredientes humanos, quanto todos os demais
estratos da sociedade, sem exceção alguma, mas cuja assombrosa
maioria guarda, com fidelidade, os princípios morais na profissão.
Não surpreende, pois, se ressinta de defeitos, alguns arraigados, e
não seja invulnerável à corrupção. Mas esta, a corrupção, não é
objeto de geração espontânea, nem o resultado de forças estranhas à
dinâmica social, senão que é produto mesmo das sociedades cuja
cultura está em privilegiar, como objetivo primordial da vida, a
conquista e o acúmulo, por qualquer método, de bens materiais, em
dano do cultivo dos valores da ética e da decência pública e privada.
Deve, no entanto, como ninguém discorda, ser combatida sem
tréguas, segundo os padrões e os limites da ética e do ordenamento
jurídico. E é o que, desde as origens, tem feito a magistratura como
instituição, a qual foi a primeira a criar, há séculos, na vigência
ainda das Ordenações Afonsinas, as corregedorias ou os juízes
corregedores, com o propósito específico de velar pela integridade
de uma função indispensável do Estado. A Controladoria-Geral da
União data de poucos anos e, a despeito de ser hoje comandada por
impoluto juiz de direito aposentado, que nela continua a honrar sua
toga, dispõe de competência curta e ação limitada. As corregedorias
do Congresso não são muito mais antigas, nem mais poderosas.
Nenhum dos Poderes da República se reveste do portentoso aparato
de controle que, ao lado da ação dos patronos das partes e dos
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representantes do Ministério Público, no âmbito dos processos,
cerca o Judiciário mediante as corregedorias locais e dos tribunais
superiores e do Conselho Nacional de Justiça, que é, à margem do
contexto teórico do equilíbrio constitucional, o único órgão
integrado por agentes externos a exercer contínua e rigorosa
fiscalização do próprio Poder.
E, no debate apaixonado em que se converteu questão jurídica
submetida ao juízo desta Corte, acerca do alcance e limites das
competências constitucionais do CNJ, perde-se de vista que seu
âmago não está em discutir a necessidade de punição de abusos,
mas apenas em saber que órgão ou órgãos deve puni-los. Entre uma
e outra coisas vai uma distância considerável.
Convém chamar a atenção para um segundo aspecto que ressalta a
artificialidade da propalada crise corrente do Judiciário. A despeito
de suas deficiências reais que, consoante dados irretorquíveis, vem
logrando superar no ritmo de suas forças e recursos morais e
materiais, o sistema judicial não perdeu a credibilidade no
desempenho da função jurisdicional e do seu papel de pacificador
dos conflitos sociais, como o demonstra a já mencionada explosão
de demandas judiciais. Para não ser ainda mais prolixo, limito-me a
registrar que, segundo as estatísticas provisórias do programa
Justiça em Números, cujas informações só se completarão em fins do
corrente mês (art. 3º da Resolução nº 76/2009), as sentenças
proferidas só no primeiro semestre do ano passado atingiram, como
reflexo da inacreditável e crescente quantidade de causas pendentes,
a cifra de 11.660.237, que, por estimativa, deve superar as 22.788.773
prolatadas no ano anterior. Em 2010, havia 60.178.413 causas
pendentes, tendo-se observado, em 2011, um aumento aproximado
de 4.000.000 de processos em curso. O povo confia, pois, na Justiça
brasileira. Se não confiasse, não acorreria ao Judiciário em escala tão
descomunal.
E, como vimos brevemente, tem razões de sobra para confiar neste
que é, conforme com todos os dados estatísticos e os notórios
avanços institucionais, o melhor Judiciário que já teve o País,
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sobretudo com a responsabilidade de resolver conflitos de uma
sociedade ainda desigual, cuja ansiedade acumulada a leva a cobrar
injustiças de tempos passados, a título de reparação. Nenhum,
nenhum dos males que ainda atormentam a sociedade brasileira
pode ser imputado ao Poder Judiciário. Nem sequer o sentimento
legítimo de impunidade, que se deve menos à inércia natural dos
órgãos jurisdicionais que a um conjunto de fatores e atores
independentes. Juiz não faz inquérito, nem produz prova de
acusação. Nem a Justiça criminal foi inventada só para punir, senão
para julgar segundo a lei.
Após mais de 44 anos de magistratura e já próximo de, com a fronte
erguida, deixar esta Corte, quero assegurar a todos os cidadãos
brasileiros, que, servindo-lhes aos projetos de uma vida digna de ser
vivida, os juízes continuaremos a cumprir nossa função com
independência, altivez e sobranceria, guardando a Constituição e o
ordenamento jurídico, sem prescindir da humildade e da coragem
necessárias às correções de percurso e ao aperfeiçoamento da
Justiça, mas também sem temor de defender, com a compostura que
nos pede o cargo, a honradez de nossos quadros e o prestígio da
instituição.
Só uma nação suicida ingressaria voluntariamente em um processo
de degradação do Poder Judiciário. Esse caminho nefasto, sequer
imaginável na realidade brasileira, conduziria a uma situação
inconcebível de quebra da autoridade ética e jurídica das decisões
judiciais que, aniquilando a segurança jurídica, incentivando
violência contra os juízes e exacerbando a conflitualidade social em
grau insuportável, significaria retorno à massa informe da barbárie.
Não é esse o nosso destino.
Com estas palavras, dou por aberto o ano judiciário de 2012. Bom
trabalho a todos.